23 fevereiro 2007

O Fla-Flu da Lagoa

Mário Filho

Se me perguntarem qual é o match que gosto mais, digo logo Fla-Flu. Aliás ninguém me pergunta, todo mundo já sabe. Não faço segredo disso. O que me podem perguntar é dos matches que eu gosto, qual foi o que gostei mais. Então respondo que foi o Fla-Flu da Lagoa. Respondo logo, quase sem pensar. Feita a pergunta, a lembrança que me vem é do Fla-Flu da Lagoa. E acho que quem me fizesse tal pergunta haveria, por certo, de esperar justamente essa resposta, se viu o Fla-Flu da Lagoa ou ouviu falar nele. E o curioso é que desse match a gente recorda apenas seis minutos. Os gols todos já estavam feitos dois a dois. Pois foi como se o Fla-Flu começasse ali e durasse apenas seis minutos, que não foram seis, que duraram a eternidade. Se quiserem saber como fizeram os gols, não sei de nada. Sei, sim, o que se passou depois. Parece que ainda vejo o campo do Flamengo arrebentando de gente. Decidia-se o campeonato de 41. O campeonato que se resumiu num match, o match se resumiu em seis minutos.

Quando o Flamengo marcou o segundo gol, antes mesmo que o garoto do placar colocasse o dois ao lado do nome Flamengo, a gente olhou para o relógio: faltavam seis minutos. Começou uma voz gritando faltam seis minutos e aí o Flamengo foi para cima do Fluminense. Para o Fluminense bastava o empate, para o Flamengo era preciso a vitória. O Flamengo atacava, o Fluminense jogava a bola na Lagoa. Não se tratava do recurso da bola fora. Bola fora não adiantava ao Fluminense. Noutro campo, a história desse Fla-Flu seria diferente. Bola fora volta logo, na Lagoa demorava. E o Flamengo jogou nágua guarnições inteiras de remo para apanhar a bola na Lagoa. Parecia que essas guarnições disputavam um campeonato de remo. Apanhavam a bola, mandavam-na de novo para o campo e ficavam nágua, os remos suspensos, os músculos retesados, prontos para quarenta remadas por minuto. Que outra bola havia de vir, e rápida. Enquanto o Fluminense pudesse jogar bolas na Lagoa não faria outra coisa.

Era ainda no tempo do cronometrista. O juiz não mandava no tempo, quem mandava era o cronometrista. E lá estava o cronometrista. A bola caía na Lagoa. O cronometrista travava o cronômetro. E o tempo parava. O Flamengo queria que o conômetro parasse, o Fluminense queria que corresse. Eram duas concepções de tempo que se chocavam, irreconciliáveis. Não é possível, o cronômetro não anda. E andava, bem que andava. Para o Flamengo corria. A angústia fazia com que para o Fluminense o tempo parasse; e corresse, desembestado, para o Flamengo. Nem o Fluminense compreendia que ele custasse tanto a passar nem o Flamengo que ele corresse tanto. Então foi um homem do Fluminense para junto do cronometrista, acompanhado logo por outro do Flamengo. E o cronômetro parava e o cronômetro andava. Com um pouco a gente olhava para o relógio e não entendia mais nada.

Só se sabia de uma coisa: que quando o Flamengo empatou faltavam seis minutos. E agora? Agora ninguém sabia. O Flamengo mandava buscar todas as bolas que tinha. Eram bolas de treino, pesadas, duras enchidas a pressa, estourando de ar. Caía uma bola na Lagoa e as bolas do Flamengo eram chutadas para campo. Lembro-me que Batatais, uma vez, fez cera escolhendo uma entre as muitas bolas do Flamengo. Apertava uma, não servia, batia com outra no chão, não servia. E lá vinha o Flamengo para cima do juíz que era Juca da Praia. Seu Juca, olha a cera. Na mesa do cronômetrista o homem do Fluminense exigia aos berros que o cronômetro andasse. Finalmente Batatais escolhia uma bola, ajeitava para Renganeshi, Renganeschi enchia o pé, bola na Lagoa.

Era o que ia dar o nome àquele Fla-Flu. Primeiro se disse que fora o Fla-Flu de bola na Lagoa. Depois se sintetizou: Fla-Flu da Lagoa. E dito Fla-Flu e dita Lagoa, já se sabia de que Fla-Flu se tratava. E nem todos os seis minutos foram de boIa na Lagoa. O Fluminense acabou percebendo que quanto mais bola jogasse na Lagoa, mais o jogo se demorava em acabar. Aqueles seis minutos poderiam durar horas e então ninguém, nem do Fluminense, nem do Flamengo, aguentaria. Para se ter uma idéia: Mário Polo não aguentou. Saiu, para a porta do Hospital Miguel Couto, bem à mão, pois fica quase junto ao Flamengo. E os enfermeiros e até médicos se aglomeraram em torno de Mário Polo. Se o Flamengo marcasse um gol, Mário Polo poderia cair. Ter um troço. E ali estava a equipe do Miguel Couto pronta para socorrê-lo.

Do Miguel Couto, Mário Polo não via nada. Mas com a experiência de quem quase que vira o futebol nascer por aqui ele podia distinguir, separar os gritos da torcida do Fluminense dos da torcida do Flamengo. Se houvesse um gol ele saberia logo. É verdade que tendo fugido de medo, ele poderia na hora confundir os gritos. Mas ele não queria, não pretendia outro gol do Fluminense. Para ele quem atacava era o Flamengo, era mesmo, inteiro, desesperado, em busca do gol do campeonato. O Fluminense se contentava com o dois à dois, não queria mais, que lhe bastava e sobrava e enriquecia o empate, que era título. O que ele ansiava por ouvir era o último apito do juiz, que não poderia ouvir do Miguel Couto. Mas poderia ver a multidão saíndo aos borbotões da Gávea. Só aí conheceria o repouso, a paz de espírito, se não explodisse, de repente, um grito que seria um urro, do Flamengo.

Já não havia mais bola na Lagoa. Agora o Fluminense recorria a outras ceras. Carreiro chegou a ficar nu da cintura para cima. Rasgou a camisa, despiu-a, para pedir um penalti a Juca. Enquanto reclamasse o penalti o tempo estaria passando, inflexível. Mas Juca, metido a calmo, de andar de malandro, já não agüentava mais nada. Foi logo ameaçando botar Carreiro para fora de campo, que botou depois. E que Carreiro inventou logo a seguir outra cera, a cera dos dez passos. Vocês sabem: há um foul, o juiz apita, se é perto da área e mesmo longe, dependendo de quem vai bate-lo, o time punido faz a barreira, o juiz conta dez passos, mas quem fez o tal foul foi Carreiro e no meio do campo, a cinqüenta metros do gol de Batatais. Juca apitou, Carreiro ficou junto da bola, Juca mandou ele sair, ele pediu a Juca para contar os dez passos.

Imaginem só, um juiz contar dez passos a cinqüenta metros do gol. Juca foi logo apontando para fora do campo. Mas Carreiro espetou as mãos no peito, perguntando se era com ele. Era. Mas por que seu Juca, que fiz eu? Você ainda me pergunta por quê? Fora. Eu não fiz nada, seu Juca. Fora! Fora! Fora! E Juca nem parecia o Juca. A impressão que a gente tinha era de que o Jura virasse Mário Vianna, que às vezes virava quando não tinha outro remédio. E os jogadores do Fluminense correram para Juca. Seu Juca, que é que ele fez? E Juca esbravejando só apontava para fora de campo. Junto ao cronometrista, o homem do Flamengo mandava parar o cronômetro, o homem do Fluminense mandava o cronômetro andar. E Carreiro no meio do campo continuava a perguntar o que é que ele tinha feito, se ele não fizera nada, absolutamente nada.

Carreiro teve que ir embora depois de esgotar todos os recursos de cera de que dispunha, e que eram muitos. Saindo Carreiro não adiantando mais a bola na Lagoa, como é que se ia arranjar o Fluminense com o Flamengo em cima dele, quase não o deixando respirar. Até Domingos da Guia, que não era dado a esses rasgos, fora para o ataque. E quanto faltava, sim, quanto faltava para acabar o jogo? Eis o que ninguém sabia, exceto o cronometrista e o homem do Fluminense e o homem do Flamengo ao lado dele. Além disso, nem adiantava de nada saber. Sabia-se antes que faltavam seis minutos e parecia que já tinham passado horas. Já escurecia na Gávea. Aquele Fla-Flu podia acabar de noite, não se vendo mais nada. Podia nem acabar.

E então Romeu Pelliciari, o careca que jogava de gorro na cabeça foi para o vai mais não vai. Pegava a bola fingia que ia não ia acabava indo e não a largava, prendendo-a, aminhando, correndo com ela dando voltas, alongando caminhos, avaçando, recuando, tombando pela direita, descambando para a esquerda. Não o preocupava outra coisa senão gastar o tempo e realmente a bola nos pés de Romeu fazia o tempo andar. E ele não precisava correr. O importante era ter a bola nos pés, dominada dócil, escondê-la, prendê-la. E Romeu Pelliciari fugia dos jogadores do Flamengo, evitava-os, fazia circunlóquios com a bola. A princípio não parecia cera. O Fluminense atacava. E Romeu Pelliciari nem de longe pretendia ser forward. Era como se ele jogasse sozinho. Não dava bola a ninguém. A bola era dele, só dele.

Quando o Flamengo percebeu que Romeu Pelliciari estava somente fazendo cera, - houve uma vez que ele chegou até a linha de fundo e não centrou a bola, apenas voltou para recomeçar tudo de novo - cercou-o, atacou-o, procurou tomar-lhe a bola de qualquer maneira. Mas o tempo andava e, de repente, sem que ninguém mais esperasse, o cronometrista apitou e Juca abriu os braços e os levantou e fez assim, Cruzando-os no ar. Era o fim. Ainda me lembro de um gemido que ouvi, de quem dá o último suspiro, olhei e vi uma senhora, já idosa, que escorregava da cadeira, já desanimada. Aquele gemido, aquele desmaio tanto podia ser de alguém do Fluminense como de alguém do Flamengo. E sendo assim eram o próprio Fla-Flu.

1 comentário:

Anónimo disse...

Sim, provavelmente por isso e